Tribalismo e individualismo

* Lembrando que você tem o direito de praticar o paganismo da maneira que quiser, sozinho, em grupo, etc. Aqui apenas discutimos o porque da necessidade de também se haver grupos tribais. Ou seja, desnecessário dizer, este não é “o” único caminho.

À primeira vista, para muitos de nós criados nos ambientes urbanos pós-modernos qualquer coisa fora do individualismo soa como “esquerda”, ou “apagador do indivíduo”, Esse não é o caso aqui.

O individualismo é a teoria que se baseia na ideia de que cada indivíduo é como uma mônada leibniziana (e de que em certa medida ele nasce assim), ou seja, de que ele possui um pouco de tudo que há fora de si em sua própria essência, sendo completamente independente de seu meio exterior. A comunidade humana que o rodeia (antigamente tribo, hoje sociedade) tem pouca função, segundo esse pensamento, na formação do “eu” (self) do sujeito.

Tal linha de pensamento é, com mais ou menos consciência, acreditado pela maioria da sociedade, e mesmo a fração minoritária que instintiva ou racionalmente o nega ainda o pratica, por simples mimese (repetição) de padrões psicológicos dominantes. Todavia existem pessoas que ao individualismo opõem um coletivismo forçado, com um coletivo abstrato colocado acima da esfera pessoal de todos os membros de um grupo social. Nenhuma das duas ideias é o que buscamos aqui.

O tribalismo não é, pura e simplesmente, “coletivismo”. Existe um princípio para a tribo existir, e ela é a friðr  (alegria, harmonia, paz) de seus membros. Como em uma barreira de escudos cada guerreiro protege o próprio indivíduo e o dos outros dentro dela, pela força de seus “elos”. A harmonia não é completa (ou talvez nem seja “harmonia” propriamente dita) se existir pelo menos uma peça sendo prejudicada pela tribo ou fora do sentimento de friðr. Qualquer tribo que seja capaz de ignorar o prejuízo causado pelo coletivo a qualquer de seus membros não merece, sequer, ser chamada de tribo.

Apesar de ser uma referência um tanto batida entre os heathens tribais canadense, estadunidenses e europeus, locais onde o heathenismo tribal já alcançou seus sucessos iniciais, Grönbech, no seu Culture of the Teutons, fala de como as tribos germânicas se baseavam na abnegação mútua. Isso significa que todos anulam-se por completo por uma ideia abstrata de tribo? Não. A abnegação é como “aparar arestas” para tornar a sociabilidade sadia e consciente. Em nossa sociedade globalizada, negar essa harmonização faz com que inúmeros indivíduos sejam prejudicados — irônico, não? Além disso, as tribos majoritariamente possuíam esquemas de participação de seus homens livres, conhecidos como þings, as assembleias. Nas þings, leis eram  criadas, anuladas e revistas, adaptando o Direito à necessidade de seus membros. Desde que qualquer indivíduo livre pudesse opinar e ter sua opinião levada à análise coletiva, na prática, não somente em teoria, o coletivo deixa de ser uma prisão e se torna uma firme base de apoio para cada um e todos os seus membros.

O ser humano é um construto social (Heidegger diria, “a existência precede a essência”), fruto da interação de vários indivíduos e grupos de indivíduos. A linguagem, a tecnologia, a cultura, todas elas possuem uma evolução muito veloz, — incomparavelmente mais rápida que a biológica — desde que nossas capacidades físicas desenvolveram-se enquanto espécie ao ponto de nos permitir organizar de maneira tão complexa o pensamento. A marca de cada um e todos os seres humanos nesse processo é inegável.

O cristianismo, por sua parte, foi o grande fundador do individualismo entre os germânicos e no Ocidente de maneira geral, quando passou a ensinar a salvação pessoal como algo mais importante que o bem-estar real das tribos.

Do ponto de vista da espiritualidade germânica, ainda, nosso espírito está rodeado de seres hereditários como dísir e álfar. Os próprios landvættir são antigos, primordiais habitantes os quais requerem respeito e atenção. O nosso sangue é aquele que nossos ancestrais nos passaram, e por isso dividimos algo material com nossa tribo, não apenas ideal. Além da própria fylgja pessoal há a ættarfylgja, o acompanhante espiritual de uma família. Nossa alma individual é o ponto de convergência de vários wights (espíritos, seres) que, pela característica única de sua fusão, forma a individualidade, a diferenciação de nosso Self. Cada um de nós, além disso, é um fio na teia da wyrd. E essa teia não se pode fazer de um único fio, mas dos encontros e interações entre todos os fios.

O objetivo de uma tribo antiga, como vimos, era alcançar a friðra harmonia através da thēaw, a virtude, os costumes em comum de seus membros. Por ser virtude, é essencialmente uma excelência pessoal, embora ligada ao reconhecimento dos demais membros da tribo. Por ser “costumes partilhados”, a thēaw também nos lembra que existe um código do que traz benefícios e prejuízos para cada um e para todos. Individualismo e universalismo pecam ambos por negar a parcela da identidade comum e a função de cada um com a corrente/círculo de seu innangarðr. Assim, a friðr torna-se impossível. E é por isso que o tribalismo rejeita o individualismo sem cair em coletivismo e/ou universalismo. Mesmo os próprios heróis, como Beowulf do poema homônimo, são na maioria das vezes lembrados pelos atos que cumprem na defesa de sua tribo, do meio onde está inserido.

Um exemplo prático: Estou sem computador. Por isso, preciso me dirigir a uma lan house para publicar este texto. Do ponto de vista imediatista do indivíduo, eu poderia ir a qualquer momento, pois assim manda meu desejo.

Mas a minha mãe está doente. Ela me ajuda, além de ter cuidado de mim a vida toda… E ter me colocado no mundo. Será que é, a longo prazo, benéfico ao meu Self (eu) realizar a minha vontade de maneira impensada e indiscriminada? Ou apenas um capricho do meu ego?

Se algo acontecer à minha mãe eu também me prejudico pois nos ajudamos mutuamente. Esse é o pensamento que carregamos para aqueles que estão em nosso innangarðr. Um presente exige um presente, ou “abnegação”, a palavra não importa: o heathen age com seu grupo desta maneira, trocando favores com sua família, as pessoas que tem contato além da comunidade heathen em que se insere. Não suga de todos os outros por puro luxo de seu ego individualista. Ajudar a sua tribo é ajudar a você. Não apenas aos outros. Do ut des: dou-te para que também me dês, um dos princípios básicos dos germânicos.

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